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Virada do leite na era do branding

Matéria publicada originalmente por Plantproject em 16/03/20. Por Romualdo Venâncio, de Descalvado (SP). Fotos Rogério Albuquerque.

Mesmo durante o almoço, Taís mantém os olhos atentos ao celular. É semana de lançamento, e a qualquer instante pode surgir no smartphone alguma mensagem que exija uma ação imediata. É o que acontece, e a leva a consultar, no mesmo instante, seu tio Jorge, o Joca, também à mesa, sobre a entrega de um lote bem específico de produtos que está prestes a sair do laticínio. A expectativa que envolve a pergunta logo vira satisfação com a confirmação de que já está tudo pronto. Mas quem disse que a ansiedade vai embora? Dali a três dias seria apresentada ao mercado a primeira linha em potes da Letti, a marca de produtos frescos da Agrindus S/A, contendo coalhada natural, coalhada com goiabada e iogurte natural. O lançamento aconteceu no dia 21 de novembro, na Casa Santa Luzia, supermercado para consumidores da classe A em São Paulo (SP).

Nos últimos dois anos, essa agitação tem sido cada vez mais comum na empresa da família Jank e criado um novíssimo capítulo na história que começou em 1945. O ponto central dessa mudança nos negócios é a entrada da nova geração e de um novo sócio, o que trouxe modernidade, profissionalização e sustentação para a operação fora da porteira, além de estabelecer uma conexão direta com o consumidor em uma linguagem atual, atrativa e até divertida. Para que isso acontecesse, também foi essencial oferecer um produto com qualidade, credibilidade, segurança alimentar, sustentabilidade e uma boa história.

A nova geração em questão é representada pelas irmãs Taís e Diana, filhas de Roberto Jank Júnior, diretor-presidente da Agrindus, engenheiro agrônomo envolvido desde sempre com a fazenda e que há tempos se tornou uma liderança na pecuária de leite nacional. O irmão Joca, que teve uma carreira na Aeronáutica, é sócio de Roberto e divide com ele a gestão da empresa, que hoje tem 1,8 mil vacas da raça holandesa em lactação e produção diária de 65 mil litros tipo A. A Agrindus é uma das maiores produtoras de leite do País e uma referência em melhoramento genético, qualidade de leite, inovação tecnológica em sistemas produtivos, sustentabilidade, conforto animal, entre outros fatores. “Sempre fomos muito inovadores dentro da porteira, nosso ponto mais crítico era como fazer isso para fora dela”, diz Roberto.

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É difícil imaginar tal limitação por se tratar de uma empresa que produz leite A desde 1998. Mas dali até 2006 a Agrindus utilizava outra marca para o leite e seus derivados. “Entramos no leite A com a marca Salute, que seria uma concorrente nossa no interior de São Paulo. Resolvemos unir forças para ganhar mercado”, afirma Roberto. A Letti surgiu quando os objetivos deixaram de ser comuns – os irmãos Jank não abriam mão de seguir com produtos diferenciados, enquanto o parceiro buscava mais o mercado de itens com pouco valor agregado. A nova marca entrou em operação em 2007, com leite tipo A, iogurte para beber e creme de leite. “Até 2017 a gente vinha trabalhando de forma semelhante ao que era com a Salute, e sempre com muita dificuldade de crescer”, comenta o empresário.

Nesses dez anos, até pela dificuldade de Roberto e Joca se dedicarem à marca, a Letti acabou se tornando muito mais uma alternativa para lidar com as oscilações do mercado lácteo. Se o preço do leite estava baixo, a Letti se destacava, do contrário, deixava de ser a melhor opção. “A principal dificuldade era a comunicação. Dentro do setor, eles faziam isso muito bem, tanto que em qualquer faculdade de veterinária ou zootecnia as pessoas conheciam a Agrindus. Mas não conseguiam falar com o público dos centros urbanos, que não conhece o dia a dia da fazenda”, comenta Taís. Para Diana, o desafio começava um pouco antes: “Costumo brincar questionando que tempo um agrônomo e um militar da Força Aérea teriam para realmente se dedicar a criar e estruturar uma marca, pensar em posicionamento, comunicação e embalagem com uma fazenda inteira para tocar”.

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Momento da virada

A mudança da operação só começou a acontecer quando as filhas de Roberto passaram a se interessar profissionalmente pelo negócio. Embora tenham crescido na fazenda, em contato permanente com a produção de leite, as vacas e a bezerrada, ao escolherem a formação acadêmica buscaram outros ambientes. O pai agradeceu. “O agro tem um problema sério de sucessão, e acredito que não faz sentido estimular alguém a ficar no negócio só porque é da família. Por isso dissemos a elas que não fizessem ciências agrárias”, diz Roberto, que agora se orgulha de discutir os rumos da empresa com as filhas. “O fato de terem feito faculdades mais amplas e voltado por vontade própria, trabalhando em um setor no qual a gente não atua, acaba sendo um ciclo bem virtuoso de sucessão.”

A verdade é que talvez nem fosse preciso o pedido de Roberto e sua esposa Ana Cecília, a Tita. Taís foi estudar na Escola de Direito de São Paulo da Faculdade Getulio Vargas (FGV). Chegou a trabalhar em escritório de advocacia e no departamento jurídico de uma grande seguradora. Até que, em certo momento da ainda recente carreira, passou a se questionar se o que mais queria na vida era advogar e consultou a família sobre a possibilidade de fazer um teste na empresa. “Meu pai não amou a ideia, mas meu tio achou legal e disse que estavam começando com uma supervisora de vendas em São Paulo e eu poderia iniciar com ela”, diz a advogada. A experiência foi de fato um grande teste. “Comecei como se fosse chão de fábrica, pois fiz toda a parte de tirar pedidos, degustação nos pontos de venda e até arrumação de produtos na gôndola das lojas. Conheci esse processo da área de vendas bem de perto.”

Surge então outra figura importante nessa virada, que embora não pertencesse à família Jank, os conhecia bem de perto. Eduardo Eisler, que por dez anos foi vice-presidente de estratégia de negócios da Tetra Pak, acabara de se aposentar e de fundar a E2E Strategy, empresa criada com a filha Einat e o filho Amit. “Ele ligou pra gente e veio um dia almoçar aqui, conversamos sobre projetos e comentei com ele sobre o leite A2, algo que era muito recente. Aí resolvemos fazer esse novo projeto da Letti, capitaneado por ele no depois da porteira, junto com as meninas”, lembra Roberto. “Mudamos completamente toda a operação do negócio.”

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O produto A2 foi fundamental para abrir caminho e conquistar a empatia do consumidor final. A maior parte das proteínas do leite produzido pelas vacas divide-se em dois grupos de beta-caseínas: A1 e A2. O processo de digestão de ambas no intestino humano acontece de forma diferente, sendo que muitas pessoas acabam sentindo certo desconforto com a A1, o que não acontece no caso do leite exclusivamente A2. No gado, essa distinção pode ser feita por meio da seleção genética, exatamente por isso 45% dos animais jovens e adultos da Agrindus já são A2A2, e a meta é chegar a 100% do rebanho. Em relação ao leite coletado na sala de ordenha, 35% é A2, o que abastece a linha completa da Letti – todos os produtos da marca são A2. “Sempre soubemos dos nossos diferenciais em termos de controle de produção, rastreabilidade, alimentos frescos com maior shelf life, mas com o A2 foi a primeira vez que tivemos algo realmente diferente para contar ao consumidor”, diz Roberto.

É aí que entra Diana, embora, a exemplo de Taís, também não demonstrasse interesse em seguir carreira no agronegócio. “A gente passou a infância inteira na fazenda, mas eu sempre fui mais urbana”, conta ela. Assim que terminou o colegial (atual ensino médio) ainda no interior, também seguiu para a capital paulista, onde se formou em publicidade pela ESPM. “Sempre gostei muito de moda e até já estava atuando na área. Então tinha mesmo certeza de que não queria trabalhar com a fazenda.” Mais uma vez, é Joca quem faz a diferença na escolha das sobrinhas. “A gente estava de férias, no final de ano, e meu tio me contou sobre o projeto. Tinha acabado de me formar e vi ali uma oportunidade de trabalhar com o que eu realmente havia estudado e com algo que é nosso. Se era para fazer uma virada de mesa com a marca, eu queria estar junto”, conta Diana.

Por mais que já pensasse diferente do irmão sobre as meninas fazerem parte do agronegócio, Joca lembra que não foi tão simples se adequar às mudanças. “Em um primeiro momento, é difícil até porque a gente estava investindo em uma área com pouco chão, que não conhece bem e não sabe direito o que vai acontecer”, diz. Mas o empresário logo passou a se surpreender com a proporção das oportunidades que se abriram a partir do dinamismo que veio com a atuação de Taís e Diana e da segurança trazida pela experiência de Eduardo, o novo sócio, para fazer um investimento tão arrojado, e que ainda está acontecendo. “Agora percebemos que há um caminho de expansão pela frente.”

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Estratégias e investimentos

Uma transformação como essa pela qual passa a Agrindus não acontece apenas com boa vontade, é preciso botar a mão nos bolsos. No rebanho, a empresa já investiu cerca de R$ 700 mil com análises para obter o DNA de cada fêmea e dos reprodutores, utilizados via inseminação artificial. Já a nova operação recebeu um aporte de R$ 1,8 milhão em comunicação, branding (construção e valorização da marca), e-commerce e toda a mudança de perfil da empresa e dos produtos. “O investimento ainda está acontecendo, e temos uma curva de retorno da aplicação em um ano e meio ou dois anos, a partir de agora”, afirma Joca. “Vínhamos de um período de crise nos últimos três anos, com queda no volume de vendas. Em um ano, apesar de sairmos de uma base que não era tão elevada, conseguimos um crescimento de 100% na comercialização, o que estabilizou o negócio e agora a começamos a retomar.”

Roberto reforça o depoimento do irmão lembrando que essa evolução nas vendas é mais significativa do que parece. “Alcançamos esse salto num ano em que o leite cru, principal concorrente da Letti aqui dentro, estava bem posicionado em relação aos anos anteriores. Mesmo com toda a dificuldade de logística, de entrada em novos pontos de venda, avançamos com preço final acima do dos concorrentes. Isso é uma sinalização muito importante”, diz ele. A nova imagem da marca, valorizando toda a história da fazenda, foi decisiva para essa conquista. Como é o caso da embalagem do leite, uma garrafa PET no formato daqueles vasilhames de vidro da época em as pessoas recebiam o leite na porta de casa. Essa é outra cartada positiva da Letti, a aposta na entrega a domicílio, aumentando a conexão até mais emocional com o mercado. “Conseguimos ampliar nosso público, tanto os consumidores que se lembram bem daquela época, quanto os mais jovens, muito preocupados com as questões do alimento saudável”, comenta Diana, citando o slogan do Letti A2: “O leite como sempre foi”.

Acertar a qualidade e a quantidade do conteúdo, o tom da linguagem e os meios de comunicação foi primordial para construir o diálogo com os consumidores e o mercado em geral. A começar pelo novo site da empresa, o maniadeleite.com.br, que traz de forma clara, simples e direta informações sobre a história da fazenda, os sistemas de produção, o rebanho, o leite A2, a opção de compra on-line ou a indicação de onde encontrar os produtos. A Letti também ganhou projeção nas redes sociais, com destaque para o Instagram, que é baseado em imagens e facilita e agiliza o acesso aos internautas. Diana ressalta o compromisso com a informação correta sobre o que é o leite A2 e seus benefícios. “É preciso grande cuidado no tom dessa conversa, deixando claro, por exemplo, que o leite A2 não é indicado para quem tem alergia ou intolerância a lactose. Por isso temos feito um trabalho forte com médicos e nutricionistas, para levar uma explicação correta a todos os nossos canais”, diz. Essa precisão nas informações também acompanha as ações de degustação nos pontos de venda.

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Uma das características mais marcantes na nova comunicação da Letti, para Roberto, é o respeito de suas filhas pela diversidade de escolhas e opiniões do consumidor. Taís e Diana não gastam energia como certamente fariam Roberto e Joca nos episódios recentes de celebridades comentando as atividades agropecuárias sem nenhum conhecimento de causa. “Teríamos batido de frente com um monte de coisa que não concordamos”, confirma Roberto. “E o tema comunicação no agro está muito presente, é muito atual. Em quase todos os fóruns do setor entende-se que há uma grande defasagem no diálogo com o consumidor final. O Agro tem uma história muito bacana para contar, mas não consegue.” No que depender de Taís e Diana, isso não se aplicará à Letti, pois muito da sustentação de sua conversa com o consumidor vem exatamente da história bacana da Agrindus. E elas sabem que há quem não queira consumir leite e derivados. “Esse não é nosso público”, diz Taís. “Se a pessoa não acredita em produtos de origem animal, está tudo bem. O que não pode acontecer é a informação chegar distorcida até as pessoas”, completa Diana.

Esforço reconhecido

O grande empenho para dar projeção à marca trouxe respostas interessantes e até inesperadas para a família Jank. Roberto comenta, entusiasmado, que até então não haviam experimentado a sensação de serem procurados por gente de diferentes capitais e outras cidades interessadas na Letti. “Tínhamos uma enorme dificuldade de cadastrar nossos produtos nas lojas, e agora recebemos ligações de Salvador, Manaus, Cacoal, Goiânia, Brasília e Cuiabá querendo a Letti por lá. Mesmo quando explicamos se tratar de produtos frescos, e por isso é difícil atender, insistem dizendo que têm um caminhão vindo para São Paulo e passam para retirar”, conta. A persistência dos novos clientes tem dado resultado: a Letti já chegou à rede Angeloni, em Santa Catarina e Paraná, e ao Rio de Janeiro. Nas principais cidades de São Paulo, a marca é encontrada em lojas como Savegnago, Jaú Serve, Pague Menos, Convém e Hortifruti Oba. Na capital paulista, também no Oba, além de Natural da Terra, Hortisabor, St. Marche, Mambo, Casa Santa Luzia e grandes redes de hipermercados.

Se a marca cai no gosto de profissionais da gastronomia, a ponto de indicarem os produtos, o reconhecimento sobe um degrau. “Quando vemos uma chef superlegal recomendar o leite Letti durante um curso ou uma chef de confeitaria fazer questão de ter Letti entre seus ingredientes, temos a certeza de que o negócio está crescendo. Estão notando que oferecemos produtos diferenciados”, afirma Diana. Agora, se o projeto com o leite A2 rende à família Jank até cumprimentos de uma rainha, aí já é outro patamar. A Agrindus foi premiada pela Fundação Mapfre, como a Melhor Iniciativa no Setor Agropecuário com o tema “Pioneirismo na produção de leite A2 no Brasil”. Em meio a 681 participantes de Europa, Estados Unidos, Ibero-América, África e Ásia, a empresa se destacou pela produção de alimentos frescos e saudáveis associada ao respeito com o bem-estar da terra e dos animais e foi uma das quatro vencedoras.

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Como a sede da Mapfre fica em Madri, na Espanha, toda a família Jank foi para lá, receber a prêmio das mãos da rainha Sofia. Inclusive Isabela, a irmã mais nova de Taís e Diana, que teve uma participação decisiva para essa conquista. Para a inscrição no prêmio, era preciso indicar a inovação e apresentar documentos que a comprovassem, além de um relatório com informações econômicas. “Pedimos a ajuda da Isabela, que trabalha no setor financeiro, para mostrar a sustentabilidade econômica da empresa e fazer análises de DRE [Demonstrativo de Resultados do Exercício]. Nós três juntas montamos o projeto e enviamos”, diz Taís. “Não tínhamos noção da dimensão dessa história na Espanha, de estar lá com a rainha e um monte de gente, os outros premiados. Uma das iniciativas, por exemplo, é uma empresa que leva comida a quase 1,5 milhão de crianças em 18 países. É uma importância muito grande”, comenta Roberto.

No balanço desse novo momento, um dos resultados mais valiosos para o produtor é a satisfação de conseguir capturar, fora da porteira, valor para a operação pecuária, algo que parecia intangível, mesmo com tudo o que era feito porteira adentro. “Sempre buscamos a intensificação da produção, com mais leite e faturamento por hectare; apostamos na verticalização, com marca própria, genética, agricultura mais eficiente, uso sustentável de efluentes”, diz Roberto. Porém, ele assegura que essa satisfação não significa estacionar, e que é preciso continuar buscando inovação, formas diferentes de comunicação e de facilitar a vida do consumidor.